segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Um balanço na mangueira, um disco das Frenéticas e um terraço de chão gelado.



Minha última visão foi um aceno de mão (poderia ser um "tchau", mas eu tenho certeza que foi um "oi") seguido por um beijo mandado pelo ar.
E eu não pude estar presente quando ela disse tchau.
Mas, e se ela, em sua imensa sabedoria, sabia que não precisava dizer tchau?

Fui uma criança de muita sorte, meus vizinhos eram minha segunda família. Uma família muito diferente da minha, mas que o destino julgou certo colocar nas nossas vidas. Essas duas famílias tinham crianças de mesma idade em gerações diferentes, de tal forma que as meninas mais velhas das duas famílias fossem muito amigas, que os meninos do meio das duas famílias fossem muito amigos e ainda, de tal forma que as duas caçulas (e temporonas) das duas famílias fossem criadas como irmãs.
Eu sou uma dessas caçulas.

Aquela que me mandou um beijo pelo ar é a mãe da outra caçula. Ela era um pouco minha mãe também.
Na casa dela sempre me senti em casa. Ao entrar pela cozinha, sempre fui recebida pela dona da casa como se uma filha de verdade estivesse entrando. E eu entrei milhões de vezes por aquela cozinha.
Havia também a possibilidade de entrar pela sala, mas eu sempre preferi entrar pela cozinha e ter a oportunidade de dizer oi para a dona daquela casa. Sempre tive um carinho especial pela dona daquela casa, talvez por ela ter colocado no mundo aquela que sempre foi a minha irmã, mesmo sem nunca termos tido o mesmo sangue.

Naquela casa nunca precisei pedir licença para nada. Naquela casa nunca precisei pedir licença para ser eu mesma.

Nos encontravamos lá. Nós, as crianças, gostavamos de brincar lá. Muito mais do que brincar em qualquer outro lugar, eu gostava de brincar lá, e de balançar naquele balanço fabuloso que havia na mangueira, no fundo daquele quintal enorme. Eu, que sempre fui louca por balanços, encontrei naquela casa o melhor balanço da minha vida.

Naquela casa eu via tudo com olhos de amor.
Naquela casa onde já havia tanta gente, havia sempre espaço prá mim.
Nas milhões de vezes em que abri a porta na cozinha, nunca percebi o menor sinal de que eu não era bem vinda. Ao contrário, era como se me esperassem, sempre.
Mas eu não pude estar lá, para me despedir da dona daquilo tudo, da dona da mangueira, da dona daquela casa.

E por quantas vezes eu e a outra filha caçula ouvimos, com enlouquecedora frequencia, o disco das Frenéticas. E cantamos juntas as músicas, deitadas no chão do terraço, o lugar mais bem habitado do mundo.
Nesse terraço sonhos tomaram forma, nesse terraço giramos nossos corpos até ter ânsia de vômito, nesse terraço brincamos com os ioiôs da Coca Cola, e fizemos planos para o que faríamos após o almoço. E nesse terraço aplaquei o calor gigantesco do verão, ao deitar as costas em seu chão frio.
Eu não precisava pedir licença, eu simplesmente deitava.

Tudo era muito simples, e por isso, tão perfeito.
A dona da casa, a casa, e tudo o que gravitava em torno delas.

E tudo isso era possível, porque a dona da casa permitia que assim fosse.

Hoje eu não consegui me despedir da dona daquela casa.
Não sei se um dia conseguirei pensar nisso sem chorar. Agora não consigo.
Mas sei, tenho certeza, que a dona da casa sabe que eu estava lá. Mesmo não estando fisicamente, não havia outro lugar no mundo onde eu mais quisesse estar.

Não pude me despedir, então decidi que não vou. Simples assim, como tudo sempre foi. Simples e claro.
Eu não vou dizer tchau.
Porque ela me disse oi e me mandou um beijo, flanando no ar.

E a vida, da forma como a conhecemos é só um átomo, um grão de areia.
Nem a dona da casa e nem a sua vida acabam aqui. Elas continuam, as duas!

Muito obrigada, por tudo.
E até logo, dona Dirce.